quarta-feira, 7 de novembro de 2007

Rotina Dessa Gente Feliz

Deitada em sua colcha de retalhos, Tia Jô, ou mesmo só Jô, como gostava de ser chamada, Jô de Jobelina, nome que tanto evitava por causa da troça que a criançada fazia com ela e com seus cabelos e seus jeitos; ela então descansou o descanso tão prazeroso em ver que acabava enfim seu trabalho. Acabavam as mandanças de Dona Zélia e seus quereres bobos e sempre insatisfeitos com as coisas da casa. As poucas três semanas de carnaval em que a patroa estaria no litoral e ela de férias, lhe dão a chance de trocar com seus botões cada pedacinho e cada cor do que mais amava fazer. Jô era a costureira responsável pelas fantasias do pequeno desfile de carnaval da cidade, e agora era só por em prática no outro dia, no novo dia, tudo que havia organizado em seus pensamentos. Dormiu sorrindo, feliz, alegre e boba de tanto amar a responsabilidade que lhe era dada pelos foliões da cidade. Acordou cedo e certeira, obstinada em ir logo comprar tudo que precisava na loja de miudezas da esquina, no centro da cidade. Um porção infinita de paêtes, lantejoulas, penas, penachos, bordados para as bordas das saias, linhas vermelhas e verdes e amarelas, as cores de sua escola de samba, contas e contas coloridas para os colares e caprichosos acabamentos dos corpetes, as fitas de todos os tamanhos, os tecidos de chita, cetim, um pouco apenas pois era caro e rasgava com facilidade, panos baratos para os coletes dos homens, espuma para as ombreiras, arames para os inflados saiotes das baianas, suas mil rendas brancas, lenços coloridos, bolas grandes e pequenas e tão miúdas, cintilantes; toda a sorte de enfeites que já sabiam em sua cabeça cada lugar que iam ocupar. Voltou para casa ajudada pelo neto que carregando a minoria da sacolas perguntava como seria sua roupa, e a do mestre sala, e da porta bandeira, e dos garotos da bateria e todos os outros, e ela, ia desenhando para ele como havia imaginado tudo bem certinho para cada um, sempre diferentes que do ano passado. Em casa, sentou-se em sua máquina de costura, e começou seu jeitoso projeto. Enquanto costurava as vestes mais simples dos batuqueiros, imaginava o trabalho pronto e reluzente, envolvendo pela bateria os corações compassados nas arquibancadas.Todos iguais, com os detalhes sobre o peito e nas calças brancas com as barras bem feitas de vermelho, verde e amarelo. Passou então para os bordados brancos, e espetava com paciência os arames para deixar cada saia na mesma proporção de balão. Usou do mesmo tecido para as batas, e para suas cabeças, cada lenço de cada uma das cores envolveria os cabelos mais esbranquecidos do desfile, com um nó na frente. O seu também estaria ali, na ala das baianas. Chegou então sua parte preferida, o mestre-sala e a porta bandeira. Utilizou todos os paetês e lantejoulas que sobraram e eram a maioria, na produção do paletó e da calça do homem, desenhando um infinito ondulado de mar colorido. Fez o mesmo na saia da mulher que era bem mais espalhafatosa que as das baianas, grande e ufante, e seguindo as mesmas ondulações de seu companheiro. Para a cabeça um adorno lindo apenas vermelho para ela e verde para ele, o amarelo era o que mais se via em suas vestes, então o destaque seria os enfeites com as penas no mesmo tom para tapar os cabelos duros. Passara assim nessa confecção que para você pode ter parecido um dia, mas para ela durou segundos, e para o tempo uma semana, corrida de vai e vens emergenciais na vendinha. Pronto, todos as fantasias estavam prontas. Chegou o dia do carnaval, seu coração, nenhum coração conseguiria parar quieto em meio a toda aquela felicidade e sons contagiantes da verdadeira festa. Em meio a toda aquela música e alegria, de tão perfeccionista, escapou-se um gritinho abafado quando seus olhos atentos viram um pedaço de cetim do lindo vestido ficar preso ao carro de som em um de seus rodopios delicados e desapercebidos da linda morena porta bandeiras. Ah a bandeira era mesma, e feita também por ela a muito tempo atrás. Engoliu o tremilique de seu sorriso e sorriu mais forte e brando ainda, pois sabia que ali não havia nada que mudasse o completo que invadia sua existência simples, a beleza em ser simplesmente assim, feliz. E tudo ocorreu perfeitamente, e ela até esqueceu do bobo cetim. Passaram-se as semanas, e na noite antes de acordar para um novo dia de trabalho, como em todos os dias em que se deitava para dormir, Tia Jô vislumbrou como seria o vestido da porta bandeiras do próximo ano, como sempre fazia sem ninguém saber, antes de dormir... E sorriu, sorriu grande e satisfeita... E em seus sonhos, o vestido conseguia estar tão mais lindo do que o desse ano...

Nenhum comentário: